Você percebe que algo não está certo quando você olha para os lados e vê pessoas diferente de você. De repente, os dois calcanhares dos seus pais, da sua irmã e dos seus coleguinhas tocam o chão, mas o seu, um deles insiste em manter-se suspenso. Apesar disso não ser um impedimento para brincar, rir, demonstrar carinho e correr, mesmo que as vezes isso acarrete em cair, o entendimento que você é diferente cai em você. Sua mãe corre com você para médicos e seu pai passa o dia inteiro trabalhando, chegando em casa muito cansado e com o uniforme sujo de graxa em uma sacola do mercado, o qual vai ser lavado depois pela sua mãe e só vai sair se ela usar detergente.
Depois de muitos médicos, idas e vindas, um sofrimento e um cansaço que te afeta, mas afeta o dobro seus pais, você vai para a mesa de cirurgia com apenas 5 anos de idade. A lágrima no rosto da sua mãe ao te deixar no centro cirúrgico não resite e cai com força.
Depois de uma segunda negligência médica, primeiro de uma anestesista que fez com que você tivesse uma hemiparesia por injetar líquido demais na espinha da sua mãe, agora a pessoa responsável por colocar o gesso na sua perna, o faz de uma forma que conforme o secar do gesso, ele endurece e começa a entrar na sua perna e isso te arranca gritos de uma dor que não pode ser explicada, apenas sentida e gritada ao ponto de não ser possível que ninguém grite.
Após um novo gesso ser colocado de forma correta, um caminho de cerca de 10 anos de fisioterapia te espera. Dores, privação de brincar, privação de uma parte da sua infância, preconceito, comentários maldosos cercam sua infância e sua adolescência. Ainda assim, você se dedica a estudar. Você se esforça o máximo que pode. Para quem suportou dores tão fortes aos 5 anos, o sono e o cansaço não são problemas. Com isso, você se torna o primeiro na sua sala por muitos anos consecutivos, sendo sempre usado como exemplo, mas ainda assim, excluído de algumas atividades porque "você não conseguiria, é melhor só assistir mesmo. Sente ali e espere".
O estudo era a única coisa que não tinham restrições. Você estudou muito! Fez inglês, fez curso de gestão empresarial aos sábados que precisava acordar as 05h00 da manhã. Você também continuou se esforçando para no boletim o 9 ser a nota mais baixa daquela sala de escola pública.
Você foi pra faculdade. Se sentiu pequeno diante tantas pessoas estudadas e com dinheiro. E ainda ali, as pessoas continuaram perguntando se você tinha machucado a perna ou se você era gay e por isso andava "meio que rebolando".
Você pensou em desistir no segundo semestre, mas ao invés disso, começou a ir para a biblioteca depois do almoço carregando no trajeto de 2 horas de percurso um lanche ou um fruta porque das 14h00 até às 22h30 ia dar fome, mas você precisava estudar e cobrir todo o gap educacional que você teve em um ensino defasado.
O cansaço era grande, mas você se formou, mesmo passando a noite em claro na véspera da apresentação do TCC, já tendo feito estágio em uma livraria famosa de São Paulo, enfrentando todo o seu medo da entrevista e da terrível dinâmica de grupo e isso, sem contar uma gestora que disse claramente que talvez aquele lugar não era para você.
Até no final da faculdade você já tinha saído do estágio extremamente prejudicial para a sua saúde mental. Foi corajoso da sua parte! E então, entrou em uma empresa privada, onde foi sua salvação. Você passou por muitos gestores que oscilavam entre uma gestão dos sonhos seguido para uma gestão de pesadelos. Você lembra quando você levantou da mesa com a cabeça erguida a passos firmes e seguiu como se fosse alguém extremamente seguro, mas no final era somente uma casca para chegar na escada de emergência e poder chorar tentando respirar fundo? Nesse momento você foi forte.
A vida te bateu forte e você permaneceu. Você estudou, trabalhou, apanhou, mas não deixou seus livros, seu raciocínio, sua coerência.
Você fez por merecer cada aumento de salário, promoção e processo seletivo que você passou. Você mereceu cada feedback positivo, elogio, reconhecimento. Ninguém fez por você. Você fez isso!
Hoje, não se sinta culpado por se presentear, por se mimar. Não se sinta mal por poder proporcionar momentos de conforto a você.
Saiba que você não é obrigado a realizar sonhos de pessoas que não fazem nenhum sentido para você. Não deixe de ser sua própria prioridade. Cuide-se. Ame-se. Seja sua prioridade. Isso não é egoísmo. Isso é merecimento.
E se em algum momento a vida sorriu para você e por isso teve uma lasca do que talvez possa ser chamado de privilégio, não se sinta culpado. Você também não tem culpa das oportunidades que se abriram pra você ou da sorte que você teve. A sorte também também pode ser desperdiçada e você não fez isso, então o mérito continua sendo seu.
Esse texto é um lembrete! Não é sobre massagear o ego. É sobre reconhecer sua própria jornada.
Ao som de Aurora
Warrior
25 de janeiro de 2023